domingo, 27 de fevereiro de 2011

ÉTICA, SEXUALIDADE E EDUCAÇÃO.

 Com a palavra o Presidente da Abrades, César Nunes...
ÉTICA, SEXUALIDADE E EDUCAÇÃO.
César Nunes
           
            Sinto-me demasiadamente feliz por escrever essa mensagem de abertura de nosso espaço de divulgação institucional da ABRADES. Tenho visto, acompanhado e  registrado a trajetória de recuperação de nossa laboriosa e valente entidade de defesa e promoção da Educação Sexual Emancipatória. E, na qualidade de presidente dessa militante instituição social, a ABRADES, socializo nesse portal de saudação uma mensagem a todos os interessados numa concepção de educação afetiva e de formação ética sobre sexualidade embasadas em ideais científicos, democráticos e emancipatórios.
            A educação sexual é uma parte integrante da formação humana. Hoje já reconhecemos a superação de estigmas e tabus que impediam a abordagem da sexualidade na escola. As décadas recentes (1970-2010) não somente superaram as marcas do preconceito e da interdição como criaram abordagens e elementos institucionais para a compreensão e formação de uma ética sexual na escola. A própria legislação brasileira, no tocante à regulamentação e proposição de conteúdos para a educação e a escola aprovou nos anos 1996 e 1997 a nova LDB (Lei 93934/96) e os Parâmetros Curriculares Nacionais. Nessa regulamentação e Orientação Sexual passou a ser um dos temas a serem abordados na educação básica, em suas múltiplas e diversas dimensões e identidades, de modo a reunir informações científicas e orientações éticas que garantissem aos educandos a compreensão subjetiva de sua identidade e fosse capaz de orientar suas escolhas sexuais e afetivas.
            A análise da sexualidade humana, isto é, a intenção de desvendar os múltiplos e profundos sentidos que se encerram na dimensão da sexualidade, para ser conduzida de maneira crítica e científica, por um lado, mas igualmente próxima e presente no mundo da vida, por outro, torna-se uma das tarefas mais exigentes e complexas da educação afetiva e formação ética de nosso tempo. Significa buscar tomar distanciamentos para ver a sexualidade em sua construção cultural, histórica e política, mas igualmente guardar as dimensões subjetivas, pessoais, idiossincráticas.
            As Ciências Humanas, especialmente, são ciências que se completam na  multidisciplinaridade, pois  partimos  sempre  da consideração de que o foco central de todas as abordagens e conhecimentos diversos é, nuclearmente, o homem e sua ação histórica, social, política, ética. Assim, trabalhar a sexualidade humana como objeto teórico, quase sempre, para melhor cumprimento dos propósitos de globalidade e radicalidade na análise, é recomendável ao investigador uma instrumentação na amplitude pluralista destas mesmas ciências, visto que não se julga suficiente  e eficaz a tentativa de  circunscrever o homem e sua ação histórica em processos restritivos ou deterministas, como à biologia, por exemplo.
            Tomamos aqui o alcance do que se circunscreve sobre o conceito de "sexualidade", no sentido antropológico amplo, como dimensão ontológica basilar do que se define como próprio do ser humano. A experiência educacional que acumulamos nos autoriza a buscar diferenciar, conceitual e metodologicamente os termos "sexo" e "sexualidade". No senso comum o termo “sexo” diz respeito, genericamente, à marca biológica e procriativa do seres vivos. Confunde-se esta dimensão biológica com o conceito de sexualidade, que, a nosso ver, é muito mais abrangente e específico, por referendar uma qualidade, um adensamento de sentido sobre o sexo biológico e ser somente atribuído aos seres humanos em sua luta e processo cultural histórico. Todavia, se a palavra "sexo" diz respeito a uma dimensão estritamente procriativa, restrita a uma interpretação naturalista, já a palavra e o conceito de "sexualidade" nos remete imediatamente para o mundo da cultura ou da amplitude cultural histórica da ação humana. Sexualidade significaria, portanto, uma "qualidade do sexo", no sentido de uma intencionalidade, uma dimensão qualificante e ampliadora da definição instintivo-biológica estreita. A abordagem da Biologia configurou uma dimensão estritamente reprodutiva, acentuada por determinantes genéticos e tornou-se quase incapaz de explicitar, no conceito de sexo, as dimensões existenciais e culturais. Já a concepção de sexualidade que assumimos nesse artigo tem a conotação de uma qualidade que se faz humana, que incorpora os componentes biológicos e a variação evolutiva da espécie humana, mas busca atingir significações culturais e existenciais muito mais exigentes. Diz VASCONCELOS:
“(...) tudo isso faz da sexualidade humana o que ela pode ser: uma descoberta, uma elaboração, uma busca. Um peso que a estrutura como um existencial, como uma dimensão do ser-no-mundo do homem, posto que não nos referimos a uma sexualidade animal, sem história e sem cultura, mas à sexualidade enquanto imersa na temporalidade, nela recebendo sua revelação vivencial, suas formalizações conceituais, sua expressão estética, seu tratamento moral e social. [1]
            Neste sentido, somente o ser humano é dotado de uma "sexualidade", pois os animais e o mundo material dos seres vivos que conseguiram, através de sua evolução biológica, a dimensão da reprodução sexual, estariam circunscritos ao mundo natural biológico. Na realidade, para definirmos um caminho ou projeto de compreensão da sexualidade como dimensão humana e social, primeiro torna-se necessário uma apreensão crítica de nossa trajetória histórica, isto é, compreender os movimentos e  modelos  hegemônicos  da  sexualidade,  na  tradição   ocidental. É certo que os modelos hegemônicos não esgotam a análise da sexualidade. Pelo contrário, abrem novas pistas de investigação sobre as sexualidades negadas, interditas, proibidas. Somente uma apropriação histórica e social  da  sexualidade  humana  nos permite  compreendê-la  como  dialética,  isto  é, dinâmica, construída a partir das contradições políticas e econômicas, antropológicas e sociais.
            E, conquanto se defina como construção histórica, é igualmente a sexualidade adensada de nossas marcas individuais, subjetivas, pessoais. Entendemos a sexualidade como dimensão híbrida, como tensão entre os processos de hominização e humanização. Daí a necessidade de pensarmos a dimensão da educação afetiva para a compreensão e apropriação de uma ética sexual emancipatória, conceber uma Educação Sexual como uma re-construção das teias e projetos que temos sobre o ser do homem. A sexualidade é a busca mesma da estética e da política significativa e plena da existência.
"Educação sexual é poder abrir possibilidades, dar informações sobre os aspectos fisiológicos da sexualidade, mas principalmente informar sobre as suas interpretações culturais e suas possibilidades significativas,  permitindo  uma tomada lúcida de consciência. É dar condições para o desenvolvimento contínuo de uma sensibilidade criativa em seu relacionamento pessoal. Uma aula de educação sexual deixaria então de ser apenas um aglomerado de noções estabelecidas de biologia, de psicologia e de moral, que não apanham a sexualidade humana naquilo que lhe pode dar significado e vivência autênticas: a procura mesmo da beleza interpessoal, a criação de um erotismo significativo do amor. Uma educação estética cobriria perfeitamente essa lacuna. Afinal, quando uma educação sexual conseguisse efetuar a passagem de uma motivação pornográfica da sexualidade para uma motivação em que a busca da beleza sensível fosse um estimulante mais poderoso que a obscenidade, ela já teria colocado as bases necessárias para que o indivíduo, daí por diante, resolvesse humanamente sua sexualidade"([2]).
            Esta "resolução" de que trata VASCONCELLOS, N. não pode ter um caráter soteriológico ou fetichista, de modo a fazer crer que haja um sentido pronto, determinado, preconcebido, sobre nossas vidas. É necessário outra vez lembrar a precariedade destas construções humanas, do próprio ser do homem, da realidade  do  mundo  como  um  todo. A renovação destas experiências de buscas fundantes de si talvez seja o mais forte apelo da possibilidade humanizadora do discurso da sexualidade. Nossa intervenção como educadores, na gama de discursos e intervenções sociais, é uma das possibilidades de entabular um diálogo ético entre gerações e engendrar novas utopias, a serem arduamente materializadas em lutas reais, sem o ranço da onipotência dogmática ou a covarde complacência do egoísmo descompromissado.
            Nossa ação no campo da educação sexual emancipatória é estratégia para a ação política sobre nosso tempo. Esta será tão mais eficaz quanto maior for sua qualidade de sensibilizar pessoas, sentidos de mundos e coisas que andam ao nosso redor, e será capaz de relativizar outros universos de apelo, pela sua verdade e coerência. Só poderá tratar com ressonância no coração de crianças, adolescentes, jovens e adultos, sobre sentidos de ser a educação que abdicar do dogmatismo e do ceticismo, e na sua ação prática, manifestar uma crença pujante na liberdade e na humanidade. Isto requer que façamos a crítica do idealismo e do subjetivismo fácil, para delinear utopias concretas, onde elas apresentam-se com eficácia e viabilidade histórica. 
            Mitologias negativistas e fantásticas repercutem profundamente na sociedade de massas. Hobsbawn, um dos grandes historiadores de nosso tempo, credita ao século XX a guinada violenta nas direções originais, no sentido de origem, propostas pela modernidade. E apresenta o sujeito histórico dessas mudanças, as forças produtivas e as relações de produção do capitalismo vitorioso. Todavia, a despeito dessa marcha vertiginosa, a contradição nodal aparece sempre, em sua trágica desumanidade. Um século de mudanças estruturais na economia e na política, rearranjos de interesses das sociedades e grupos hegemônicos e o trágico quadro, de outro lado, de um saldo de sofrimento e perdas para a grande maioria dos homens. Depois de um ciclo de prosperidade, dos anos 1940 aos 1970, chamado por Hobsbawn de Era de Ouro, estaríamos vivendo uma experiência transitiva para uma sociedade e economia consumista, individualista, atemporal ou ahistórica, presentista e egóica. No mundo da globalização as desigualdades sociais aumentaram na crescente divergência entre o mundo rico e o mundo pobre que se tornou cada vez mais evidente a partir da década de 1960.  
            O progresso econômico aconteceu à custa da “deterioração ecológica”, da “padronização do desejo de consumo” e da “tecnologização da vida cotidiana” e no “desemprego em massa”, pois “os seres humanos só eram essenciais para tal economia num aspecto: como compradores de bens e serviços”. O que proporcionou tudo isso foi a substancial reestruturação e reforma do capitalismo e um avanço bastante espetacular na globalização e internacionalização da economia. A Era de Ouro “democratizou o mercado”- afirma peremptoriamente Hobsbawn. Como conseqüência desse processo avassalador estamos vivendo uma portentosa mudança cultural. A revolução cultural de fins do século XX pode assim ser mais bem entendida como o triunfo do indivíduo sobre a sociedade, ou melhor, o rompimento dos fios que antes ligavam os seres humanos em texturas sociais coletivas e institucionalizadas: comunidade, família, estado, nação etc. Vivemos uma crise universal e global, que tem com causa fundamental a transnacionalização da economia mundial, criada na “Era de Ouro”, idéia esta que suplantava e solapava os regimes e sistemas de Estados nacionais.  Além da crise econômica e política é salutar destacar, para uma consciência de nosso tempo, a crise moral e social, a proliferação da descrença em relação às conquistas modernas das teorias racionalistas e humanistas. Não se trata de uma singular crise moral e social “não era a crise de uma forma de organizar sociedades, mas de todas as formas”.  Nessa abissal lacuna a descompressão sexual, o hedonismo, a virtualização de formas tecnologizadas de erotismo, a pansexualização da violência e a explosão erótica produzem uma nova dieta sexual: mecânica, genital, quantitativa, deserotizada, performática, egoísta, descompromissada afetivamente e incapaz de criar laços recíprocos. Trata-se de um consumismo sexual. Essa é a nova forma da repressão sexual, pois a sexualidade reprimida é aquela na qual não há sujeitos livres e esclarecidos, são objetos de uma determinação ideológica ou autoritária. Se a repressão, até bem pouco tempo atrás, era de natureza negativista, hoje ela se traduz em sua expressão impulsionadora da sexualização de todas as dimensões do mundo da vida. Todavia, tanto numa quanto noutra, quando a pessoa não se torna o sujeito das condutas e atos, reconhece-se a repressão sexual.
            Encontramo-nos com jovens e crianças ansiosos por saber de si, de seu mundo, perguntavam sobre sexo ou sobre sexualidade, mas tinham por suporte uma pergunta muito maior, que é aquela que perscruta sobre o mundo e o sentido que podemos dar a ele. Esta intervenção é mais fundante do que quaisquer outras que um adolescente  pode  perceber,  a  de  resgatar  a  capacidade  de ser sujeito e a de amar.
            Registra ainda nosso interlocutor HIGHWATER:
"O erotismo não é sexo bruto, mas sexo transfigurado pela imaginação (...) A derradeira conseqüência da rebelião erótica será o desaparecimento do erotismo e daquilo que foi a sua mais sublime e revolucionária invenção: a idéia do amor" ([3]).
            Desta perda do amor sabemos todos, alienação do trabalho, do desejo e do mundo humano. A dessacralização abrupta de todas as esferas da vida humana, de que nos fala WEBER, M. (1864-1920), surge como um fenômeno que atinge também e dilacerantemente a sexualidade. Não somente da necessidade de dominar, de fazer a contabilidade desta dominação e de reacender marcos de controle, mas também para exorcizar-se de si mesma, eximir-se de culpa e supostamente re-significar-lhe os contornos e seu alcance. Michel FOUCAULT nos interpela com o fenômeno da incitação à fala do sexo, como forma ambígua e polívoca de "catarsys" e dominação, ao afirmar:
"Mas, por volta do século XVIII nasce uma incitação política, econômica, técnica, a falar do sexo. E não tanto sob a forma de uma teoria geral da sexualidade mas sob forma de análise, de contabilidade, de classificação e de especificação, através de pesquisas quantitativas ou causais. Levar "em conta" o sexo, formular sobre ele um discurso que não seja unicamente o da moral, mas da racionalidade, eis uma necessidade suficientemente nova para, no início, surpreender-se consigo mesma e procurar desculpar-se ([4]).
            Se observarmos tantas linhas interpretativas, algumas delas tão exigentes que suspendem nosso próprio discurso, como recriar uma utopia para esta forma de intervenção? Precisamente neste ponto limitamos o alcance da ciência, para adentrarmo-nos no campo ético e político. Só a ação política  e a educação afetiva para a proposição de uma ética sexual emancipatória nos porá de novo como construtores de uma nova rede de significação para a vida e sociedade humana. A Ética e a Política eram, desde Aristóteles, as ciências práticas que deveriam pautar o caminho racional para a felicidade.
Bibliografia.

ADORNO, Theodor Educação e Emancipação, Paz e Terra, São Paulo, 1995.
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1989.
ARISTÓTELES. Política. Brasília: Ed. da UNB, 1985.
ENGELS Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Rio de Janeiro: Ed. Vitória, 1981.

FREUD, Sigmund, O Futuro de Uma Ilusão, Editora Imago, Rio de Janeiro, 1997.
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. 8. Ed. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1981.
MARX, Karl. Escritos de Juventud. México: Ed. Fondo de Cultura Economica, 1987.

NUNES, C. A Desvendando a Sexualidade, Editora Papirus, Campinas, 2010, 7ª Edição.
______________ A Educação Sexual da Criança, Autores Associados, Campinas, 2006.
SARTRE, J. P Esboço de Uma Teoria das Emoções, Zahar editores, Rio de janeiro, 1965.

SILVEIRA, Paulo e DORAY, Bernard. Elementos para uma Teoria Marxista da Subjetividade. São Paulo: Ed. Vértice, 1989.




[1]  VASCONCELOS, Naumi. OS DOGMATISMOS SEXUAIS. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1971, p. 3.
[2]. Ibidem, p. 111.
[3]. Idem, p. 185.
[4]. FOUCAULT, M. op. cit. p. 26-27.